AMANTES ETERNOS



 


Gênero: Drama

Direção: Jim Jarmusch
Roteiro: Jim Jarmusch
Elenco: Tilda Swinton, Tom Hiddleston, Mia Wasikowska, John Hurt, Anton Yelchin, Jeffrey Wright, Slimane Dazi.
Produção: Jeremy Thomas, Reinhard Brundig
Fotografia: Yorick Le Saux
Montador: Affonso Gonçalves
Trilha Sonora: Carter Logan, Jozef van Wissem
Duração: 123 min.
Ano: 2014
País: Alemanha / Estados Unidos
Cor: Colorido
Estreia: 14/08/2014 (Brasil)
Distribuidora: Paris Filmes
Estúdio: Pandora Filmproduktion / Recorded Picture Company (RPC)
Classificação: 18 anos





NOTA DO RAZÃO DE ASPECTO:

A temática do vampirismo oferece matéria-prima extremamente rica para escritores, cineastas e criadores em geral. A qualidade da obra criada será proporcional ao talento e às intenções do demiurgo. Na mais tradicional abordagem, trata-se de metáfora para a sedução - de um estranho que chega, à noite, e tem uma interação física (a mordida) tão intensa que leva a vítima ao êxtase ou mesmo à morte; o monstro que caça e toma a vida para preservar sua imortalidade... o sexo/mordida como a morte da vítima/castidade, em um misto de atração e temor que atrai com facilidade as audiências. 
Na história do cinema, pelo menos desde 1922, com o Nosferatu de Murnau, os vampiros nunca estiveram muito tempo longe dos holofotes. Com esse enfoque do vampiro como monstro/vilão a ser derrotado, tivemos outros exemplo clássicos como o Drácula (1931) da Universal, com Bela Lugosi (bevare...) e a série de filmes da Hammer com Christopher Lee nas décadas de 1960 e 1970 - dois intérpretes que associaram suas imagens ao famoso Conde. Isso sem mencionar as diversas variações da história, envolvendo vampiras (lésbicas ou não), blaxploitation, e muitas comédias de gosto duvidoso.
O tema já vinha passando do ponto do esgotamento, quando, em 1976, Anne Rice publicou seu livro "Entrevista com o Vampiro" (cuja primeira tradução brasileira é de ninguém menos que Clarice Lispector). Oferecia-se ali um outro olhar:  o vampiro não era mais o antagonista da história, mas seu fio condutor; o vampirismo era agora metáfora para a própria condição humana: um misto de solidão e luxúria, perda e necessidade de interação.
A década de 1980, e o seu culto por anti-herois (como um Batman sisudo, um Wolverine ou um Justiceiro) começou a lançar as sementes para receber de braços abertos o novo vampiro - ainda que, nas telas, esse movimento tenha demorado um pouco mais. Em A Hora do Espanto (1985) e Os Garotos Perdidos (1987), o vampirismo ainda vem de fora, e não de dentro. Uma espetacular exceção é Fome de Viver (1983), que traz David Bowie e Catherine Deneuve como o casal de vampiros mais charmoso da história.                                                                                                
Tendo recebido mais camadas para sua construção, e virado o centro da narrativa, a figura do vampiro passou ao protagonismo na década de 1990. Na TV, a série Maldição Eterna (Forever Knight) trazia a figura de um vampiro que procurava expiar a culpa de seus anos de matança trabalhando como policial em Toronto.  Em Buffy, já havia espaço para Angel e Spike tornarem-se "do bem". Não por acaso, o próprio Entrevista com o Vampiro ganhou uma (boa, até) adaptação para o cinema em 1994. Até mesmo na releitura de Drácula feita por Coppola (1992), acrescentou-se um prólogo que transforma uma história de terror em um conto de amor eterno.
É claro que nem todos os filmes adotaram essa nova linha – e bobagens (deliciosas, para alguns) como Um drink no inferno (1996) e Vampiros de John Carpenter (1998) ainda se apegavam – com um certo ar de incontornável de caricatura – à imagem do vampiro monstrengo.
Em outra mídia - os RPGs - o autor Mark Rein-Hagen compilou as variantes do arquétipo do vampiro em seu jogo Vampiro: a Máscara, lançado em 1991, e que viria a exercer imensa influência em filmes e séries de TV posteriores - além de ter sido adaptado na breve Kindred: the Embrace (1996). Consolidava-se a inversão da lógica: os jogadores, em vez enfrentarem os perversos vampiros, interpretavam esses seres da noite, ao mesmo tempo gozando dos novos poderes, mas confrontados com a condição de amaldiçoados pela noite eterna. Mais pós-moderno, impossível. Infelizmente, o que era para ter sido um jogo sobre terror pessoal, acabou se tornando uma disputa de clans com vampiros mafiosos bombados.
O jogo  - e todo o World of Darkness de Rein-Hagen - teve enorme influência na série de filmes Underworld (a partir de 2003). Mas aqui – e também na série de filmes  Blade (cujo primeiro exemplar é de 1998), a condição vampírica era mais utilizada como desculpa para a resistência dos personagens a trocar mais tiros e à busca pela estética da noite e do couro. Muita pose, muita ação, mas pouco terror, fosse pessoal ou não.
Como o tema é rico, ainda é capaz de produzir boas obras, se bem tratado. Entre os exemplos recentes, tem-se Deixe ela entrar (2008) e Byzantium (2012),este último de Neil Jordan, que já havia lidado com os vampiros na adaptação cinematrográfica de Entrevista com o Vampiro. Ambos são filmes interessantes, e, em especial o primeiro, tem a sorte de vir de uma estética não-hollywoodiana.
Mas já se via um novamente um esgotamento do tema do vampirismo. A pá de cal no cinema viria com a saga Crepúsculo, com seu vampiro cintilante em um relacionamento em eterna (pun intended) crise com a guria mal resolvida.  Em contrapartida, a TV trazia algum alento ao tema com True Blood, que ao menos respeitava o erotismo que o tema pede - mas que, talvez pelo esgotamento, não conseguiu me seduzir (pun II intented). A recente - e cancelada - série Drácula (2013), com John Rhys Meyers, não acertou a mão, em seu flerte mal resolvido com o romantismo, a estética steampunk e a pura ruindade.
Essa introdução - que trouxe apenas uma pincelada em uma história muito mais detalhada do vampirismo no cinema - está aí para mostrar duas coisas: a superexploração do tema - tornando, portanto, muito difícil conceber uma obra que acrescente de fato alguma coisa a essa discussão; e, por conseguinte, meu relativo cansaço e descrença em relação à escolha do vampirismo como metáfora temática.
Todo o tamanho dessa história e dessa desesperança é, entretanto, diretamente proporcional ao prazer – e talvez não seja essa a melhor palavra - oferecido por Jim Jarmusch e seus Amantes Eternos (tradução, diga-se, pouco inspirada para o título original). Se a saga Crepúsculo foi uma "adolescentização" do mito do vampiro, Amantes Eternos é um filme para adultos.
É um prazer perceber o trabalho atento de um diretor naquilo que pretende contar. Desde a primeira cena, Jarmusch já informa que a música será um elemento importante na narrativa, e apresenta seus protagonistas como partes complementares de um mesmo ciclo: Adam, um músico depressivo, recluso e cansado de sua relação com o humanos – chamados "carinhosamente" por ele de zumbis – e Eve, sua esposa e complemento – ainda aberta ao mundo, às interações e aos pequenos prazeres da vida, como dançar, sozinha, por puro deleite. O pequeno detalhe é que ambos são vampiros.
As opções de Jarmusch para mostrar essa complementaridade entre os amantes são nada herméticas:  o apartamento de Adam é pesado, escuro como suas roupas e cabelo, e repleto de instrumentos musicais vintage e aparelhos de tecnologia ultrapassada. Eve é de um loiro quase branco, usa roupas claras, um iphone (branco, claro!) do último modelo, e mora em um apartamento mais leve e com detalhes étnicos. Ele mora em uma cidade norte-americana - e foi uma sacada genial escolher Detroit, uma cidade com um histórico econômico (carros!) e musical (Motown!) de sucesso, que encontra-se falida e decadente (como a própria humanidade); Eve, por sua vez, mora em Tânger, uma cidade que um passado de história riquíssima e que, ao contrário da cidade norte-americana, experimenta nos últimos anos um surto de desenvolvimento. O ex-futuro decaído e o passado revitalizado.
A evocação do yin e yang, das forças que se complementam e interagem, é reforçada pelo fato de Adam usar um pingente com uma pedra branca e Eve usar uma pulseira com uma pedra petra. Em diversas cenas do filme, vislumbramos a pele pálida dos protagonistas, estrelaçados, em meio a lençois negros, em tomadas quase etéreas.
Vale destacar a escolha de elenco. Tom Hiddleston e Tilda Swinton são atores de uma beleza exótica, que provoca atração e estranhamento, como vampiros deveriam causar. Ambos entregam uma performance densa e convincente. Completam os vampiros do filme John Hurt e Mia Wasikowska. Sobre o personagem de Hurt (sempre muito bom), eu evitarei spoilers. Wasikowska interpreta Ava, irmã de Eve, que reaparece repentinamente na vida do casal principal, e causa os problemas que alavancarão a segunda metade do filme. A interpretação da atriz australiana é a única que destoa um pouco do resto do elenco, soando às vezes forçada e caricatural.
Mas Amantes Eternos não é um filme no qual a história, em si, importe tanto. Trata-se, sobretudo, de um grito de Jarmusch contra a infantilização e a banalização humanas. Adam e Eve (opções de  nomes igualmente geniais, por remeterem ao casal original, que viveu o paraíso) são seres eruditos e requintados. Pela primeira vez há personagens que rivalizam em charme com o casal protagonista do já mencionado Fome de Viver.
Ele toca diversos instrumentos musicais; ela lê em todas as línguas. Ambos identificam as plantas e animais por seus nomes científicos. Ele lamenta a dificuldade da humanidade em reconhecer e incorporar o conhecimento científico gerado ao longo dos séculos; ela é capaz de avaliar com precisão a idade de qualquer objeto. Afinal, após viver por quatro ou cinco séculos, é esperado que o acúmulo de experiências e conhecimentos transforme e enriqueça alguém.
O problema é que a erudição, em épocas de muita velocidade e pouco conteúdo, é confundida com pedantismo. Mesmo a cultura hipster, que, de forma enviezada, valoriza um pseudo-intelectualismo, não representa, nem de longe, uma evolução para a humanidade. Os únicos humanos dignos de alguma atenção, ao longo do filme, são:  a) os que se estabelecessem como ponte de relacionamento entre os vampiros e o mundo - e é interessante perceber o espelhamento dos personagens Ian (Anton Yelchin) e Bilal (Slimane Dazi); b) as fontes de nutrição dos vampiros (que, em mais uma bela escolha simbólica, precisam de sangue humano "não contaminado" para o consumo), como o Dr. Watson (sim, há esta e inúmeras referências literárias com doutores); e c) os músicos, que, como artistas, seja em Detroit ou Tânger, são os "zumbis" capazes de atrair a atenção de Adam. A única relação possível e valorosa é pela arte - e, nesse sentido, o destino do personagem de John Hurt traz mais um forte simbolismo ao filme.
A música, aliás, é um personagem à parte em Amantes Eternos: do rock experimentalista ouvido e composto por Adam - sem a intenção primeira da fama, tão comum nos dias de hoje - passando, necessariamente, por clássicos e eruditos, e contraposto por sons de influência árabe que acompanham Eve. Em comum entre os dois extremos, certas dissonâncias e estranhamentos, com harmonias belas, mas estranhas - novamente, ecoando o que vampiros são, e, em especial, a falta de sintonia entre Adam e a contemporaneidade. É delicioso perceber que, já próximo ao fim do filme, uma canção é capaz de juntar rock e música árabe, na hipnótica voz da libanesa Yasmine Hamdan.
O moderno, o presente, é representado por Ava:  impulsiva, egoísta e inconsequente. Sem cometer spoilers, é sua chegada que estraga o equilíbrio reencontrado pelos protagonistas enquanto unidade - e são estabelecidas pelo menos duas reflexões a mais: será que devemos tolerar o que nos é familiar (a irmã), ainda que saibamos que nos fará mal?  É sábio darmos "mais uma chance" ao que sabemos, por todo histórico, que só trará infelicidades?
Qual a solução ideal?  Buscar isolar-se o máximo possível, como opta Adam, e consumir-se no próprio sofrimento?  Ter um olhar holístico e piedoso, como Eve, que tolera - talvez demais - as infantilidades  humanas e vampíricas?
A resposta talvez esteja, parcialmente, em outra bela simbologia, que faz dois objetos - um de morte e outro de vida - serem feitos do mesmo com o mesmo tipo de madeira. No fim, o futuro e a vida dos vampiros depende dos humanos, mesmo que para isso eles precisem recorrer, mesmo a contragosto, a seus instintos mais primários. Quem sabe muito, tem mais repertório.
O resto são apenas zumbis.

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